domingo, 14 de fevereiro de 2010

Crônica - OS CRAQUES DA VIDA

O ser humano, esse insatisfeito, tem a triste mania de reclamar de tudo, até mesmo, como se diz popularmente, de “barriga cheia”. O ser humano passa tanto tempo reclamando que acaba esquecendo que vencer os obstáculos que a vida nos impõe, de uma forma ou de outra, diariamente é que se faz o grande desafio de viver e não apenas de simplesmente sobreviver. Lições de vida a própria vida nos ensina, através de outros e menos “reclamões” seres humanos, diariamente. Foi o que aprendi e a vida me ensinou observando em momentos difíceis comportamentos humanos exemplares. Quando passei na porta do bar numa movimentada rua da Zona Sul do Rio aquele homem sentado, com as duas pernas amputadas, numa cadeira de rodas era bem menorzinho do que todos os outros que o cercavam ao redor do grande e longo banco feito de mesa. Copo de chope na mão, o homenzinho, aparentando uns cinquenta e poucos anos de idade, ria as gargalhadas, falava alto e nem parecia importar-se de estar ali sentado naquela limitadora cadeira de rodas, ainda mais num país em que não há nenhum respeito pelo deficiente físico. Durante mais de uma hora o homem da cadeira de rodas ficou ali conversando alegremente, mesmo que estivesse menor, só fisicamente, diante de todos os outros companheiros de copo.
Mas foi na hora de ir embora que o pequeno grande homem se agigantou e ficou maior, muito maior do que qualquer um de nós. Pagou sua conta e aos que pensavam que ia pedir uma ajuda para que empurrassem a cadeira de rodas, deu uma lição de independência: saiu sozinho “manobrando” a sua cadeira de rodas, atravessou a rua se aproximou de um carro tipo jipe fechado, abriu a porta traseira e antes mesmo que algum aventureiro viesse lhe prestar ajuda ( não confundir esse tipo de ajuda com solidariedade) saltou, como um perfeito e ágil malabarista, da cadeira para o carro, puxou ele mesmo a cadeira de rodas, fechou-a colocou no carro, arrastou-se habilmente até o banco dianteiro e saiu dirigindo com maestria, não sem antes deixar uma gorjeta para o impressionado guardador, muito mais necessitado não só de dinheiro mas principalmente de força de vida, do que ele, o considerado incapaz. Incapaz de que?
Acompanhei a cena com admiração e até certa inveja. Lembrei-me imediatamente de outro episódio que me chamou, há muitos anos, a atenção: a pelada corria solta num daqueles brasileiríssimos campinhos de futebol do Aterro e um dos jogadores contrariava uma das máximas do futebol. Ele era literalmente o perna-de-pau, mas era também, paradoxalmente, o craque do jogo. Crioulinho esperto fazia sem uma das pernas e agarrado heroicamente a um apoio de madeira algumas jogadas fantásticas (puro balé e malabarismo) como se fosse um anônimo Pelé de muletas. Driblava os adversários e as dificuldades do destino. Parecia um Saci o crioulinho bom de bola. E bom de vida.
Ao ver agora o pequeno e limitado homem agigantar-se diante de suas limitações físicas, estou convencido de que não existem limites, pelo menos físicos e emocionais. Já os limites morais existirão sempre funcionando, esses sim, como um necessário limite. Vencer os limites e as dificuldades e só uma questão de força. De acreditar que tudo é sempre possível.
* É preciso apenas parar de reclamar tanto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário