quarta-feira, 21 de abril de 2010

CRÔNICA ------ Um Beco com saída

Se fosse em Ipanema ou no Leblon, o Beco das Garrafas, palco mais importante da Bossa Nova, não teria acabado. Plantado em Copacabana, acabou virando ponto de botequim e das chamadas boates suspeitas, se é que alguém pode suspeitar de alguma coisa que todo mundo sabe o que é e como funciona. Bem que o velho Beco poderia voltar a ser um templo musical como o foi durante um inesquecível período. Havia música, mas não havia barulho. Vez por outra, algum morador retardatário e mais calibrado gritava para que jogassem a chave de um apartamento. Vinha a chave e choviam garrafas, o que deu o nome ao beco.
Era um beco (e tomara que volte a ser) que encheria de orgulho hoje os que só conhecem a Bossa Nova por ouvir dizer e tocar. Naquele beco do Bottle’s e do Little Club estacionavam todas as noites dezenas de músicos. Foi ali que Sérgio Mendes deu as suas primeiras canjas. Eram todos duros e se alimentavam de conversa, e vez por outra de um angu do Gomes devorado na Praça Quinze como se fosse o mais caro caviar . Entre uma colherada e outra (muitas vezes um único prato era dividido entre cinco ou seis), ficavam todos a esperar Sérgio Mendes, que apesar da fama de pão-duro, às vezes até pagava um prato (um só, é claro) pegar a barca para Niterói, onde morava.
O Beco deixou muitas histórias, muitos talentos e muitas lembranças: ninguém esquece, por exemplo, da heróica noite em que Lennie Dale, um coreógrafo americano que abrasileirou-se rapidamente, cortou o supercílio, quando cantava num show, que de tanto entusiasmo e movimento fazia do pequeno palco do Little Club um verdadeiro Teatro Municipal. O sangue jorrava, o pintinho amarelinho (nada a ver com o do Gugu Liberato) que Lennie tinha nas mãos ficou vermelho, mas ele não parou de cantar e dançar. O show precisava continuar e continuou. Até o fim. No dia seguinte, lá estava o Lennie outra vez, curativo no supercílio como se nada tivesse acontecido.
No Beco acontecia de tudo, mas tudo era nada para quem queria muito mais. Ainda se fala da noite em que Ronaldo Bôscoli mostrou ser também um excelente “político” e, portanto, ator. A loura cantora Rosana Tapajós fazia um show no Bottle’s e foi criticada por um jornalista que acompanhava tudo, todas as noites, no Beco. Mal o repórter-crítico chegou, o marido da cantora (um argentino conhecido como “Cachorro”) veio tirar satisfações, e foi aí que a arte de Ronaldo Bôscoli manifestou-se mais inteira. Colocado entre o jornalista e o marido defensor, conseguiu uma proeza inacreditável: falava mal do jornalista (dirigindo-se ao marido defensor), virava para o lado e, simultaneamente, falava mal do marido defensor (dirigindo-se ao jornalista). A noite acabou em paz, e é claro, às gargalhadas.
Ninguém esquece também da noite em que , levada por amigos, a gauchinha Elis Regina foi cantar, pela primeira vez no Beco. Cantou e voltou todas as noites. Ninguém tinha dúvidas de que ela viria a ser a melhor cantora do Brasil. Os shows de Elis se repetiam por várias noites, como se repetia o mesmo ritual: terminado o show, ela conversava um pouquinho e depois seguia a pé, sempre acompanhada de muitos amigos, até a rua Barata Ribeiro, onde morava num pequeno apartamento com os pais.
Depois, Elis descobriu outros palcos, entrou por outros becos, cantou para muitas platéias, sempre com o talento que todos no Beco das Garrafas sabiam que ela tinha. Um dia, virou estrela também no infinito, onde continua e continuará brilhando intensa e definitivamente.
* Deve, certamente, ter descoberto um novo Beco.

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