CRÔNICA -- Ver e enxergar

Não sei se foi influência da reportagem que assisti sobre uma catadora de lixo que virou modelo, mas o fato é que, de repente, me flagrei, andando por uma feira, tentado descobrir moças simples que nem o massacre da vida diária consegue enfear e que também podem virar modelos. Tomar, como se diz por aí, um “banho de loja” para melhorar de aspecto. E de vida.
Muita gente não comprava quase nada. Apenas caminhava na feira (aliás, não sei confesso como as feiras ainda sobrevivem se tudo o que vendem também é encontrado, e a preços bem mais em conta, em qualquer supermercado). A impressão que me deu (talvez eu tenha arranjado uma desculpa) é que todos os olhares estavam diferentes com as pessoas tentando descobrir entre as moças que passam o dia convivendo com escamas, água suja e um desagradável cheiro de sardinha uma beleza na qual nunca reparamos.
A descoberta da catadora de lixo não é novidade no mundo da moda: muitas modelos surgiram atrás de balcões de lojas, caixas de supermercados ou em oficinas: a hoje internacional Shirley Malmann era operária de uma fábrica de sapatos no Rio Grande do Sul e conta-se que Luzia Brunet foi “descoberta” quando era frentista em posto de gasolina.
O recente episódio com a catadora de lixo tem significado maior porque nos mostra que é preciso enxergar, além de ver. Quem tem sensibilidade para enxergar pode encontrar muitas belezas para as quais não dava a menor bola quando apenas se limitava a ver. É como olhar um antigo álbum de fotografias: se você enxerga descobre a cada dia, na mesma velha foto, um detalhe novo, uma beleza diferente.
Enxergar, mais do que apenas ver, exercita sentidos dos quais muitas vezes nem nos damos conta. Talvez por isso, depois que saí da feira, também me flagrei olhando diferente para as mesmas vitrines e descobrindo novos detalhes em cada já percorrido pedaço de chão. O episódio com a catadora de lixo, agora modelo, está nos ensinando que em todos os momentos da vida é preciso enxergar muito mais do que ver. Afinal, quem enxerga sempre vê mais longe e mais inteiro.
* Muito mais bonito