terça-feira, 17 de janeiro de 2012

CRÔNICA------ A morte da minha mãe

Ela partiu, mas quando ainda vivia era como se morta estivesse. Perdera a lucidez, a força física, a vontade própria. Não tinha mais vida para viver. No estado cruel de debilidade física e emocional em que ela se encontrava a vida não fazia mais o menor sentido. Como minha mãe muitos outros idosos que não conseguiram ter com saúde a tão buscada longevidade, estão aí praticamente guardados em um porão onde se jogam coisas antigas e geralmente inúteis. Porões como costumam ser as casas (casas, mas não lares) que “abrigam” os idosos e fazem os mais jovens livrarem-se do que muitos consideram um fardo. Às vezes é mesmo e só a hipocrisia não nos deixa perceber isso nitidamente. Minha velha mãe ainda viva, mas já sem vida, estava lá e não me perguntem por quê?
Não importa muito nessa altura da ex-vida. Minha mãe não foi e não será a única a nos mostrar uma realidade para a qual, na maioria das vezes, fechamos os olhos. Uma realidade que amanhã pode ser a nossa. Grande parte, talvez a maior, de nossos idosos está pagando um preço muito caro para continuar de olhos abertos. Sem vida, mas ainda respirando - respirando com dificuldade. Que bom se nossos velhos pudessem despedir-se da vida em paz e não simplesmente jogados em um depósito de qinquilharias.
Se olharmos pelo lado bom (a vida tem sempre um lado bom), podemos até acreditar que felizes são os velhos que ainda podem contar com o, digamos, “conforto” de uma “casa de repouso”. A maioria de velhos fica jogada em casa mesmo sem qualquer recurso e sem o mínimo de atenção. Ainda bem que em sua debilidade nem percebem a torcida que existe para que morram logo. Sem sofrimento. Em paz. Como se anjos fossem.
Desde os tempos de juventude e ainda um sonhador repórter ouço dizer que são cruéis os parentes que abandonam seus idosos em asilos. Agora descubro que não é bem assim: é difícil, cruel até, para um filho enfrentar o ter que ver a mãe morta-viva e todas as outras mães e pais que ali estão como se a vida que viveram não tivesse valido a pena. Nada tivessem representado e acrescentado a outras vidas. Só lhes restou o cruel castigo imposto pela própria vida. Mais cruel do que a morte. Aliás, a morte só é ruim para quem fica vivo: quem por aqui continua é que sofre a saudade da ausência definitiva.
A dificuldade maior de ter que enfrentar esse tipo de asilo (hipocritamente chamados de casas de repouso ou lar de idosos) é perceber o quanto somos impotentes diante da vida. Não podemos dar nossas vidas para prolongar a vida de nossos parentes, daqueles que amamos. Não há nada a fazer a não ser cumprir a obrigação (ninguém vai a um asilo por prazer e diversão) de visitar aqueles que já nem percebem direito as nossas visitas e na maioria das vezes nem sabem o que está acontecendo. Estão mortos-vivos. Todo velho deveria ter até o fim aquele olhar de sonho e de esperança das crianças. O fim deveria ser menos cruel.
Um médico e amigo perdeu recentemente o pai. No dia seguinte estava no consultório trabalhando até aliviado. Fácil de entender: como profissional de saúde, acostumado a cuidar das dores e doenças de pacientes de todos os tipos torcia para que seu velho pai morresse sossegado, sem dor, sem sofrimento. A dor da doença não dói só em quem está doente. É sempre uma dor que machuca toda a família
O velho pai do médico sofreu uma queda em casa. Deitou na confortável cama para descansar. Não acordou mais. Certamente adormeceu para sempre sorrindo, sem a angústia do sofrimento dolorido que nos arranca as entranhas aos poucos.
A morte da minha mãe mostrou que infelizmente a velhice sofrida é um das regras da vida. Podia ser menos cruel. Com quem fica e com quem está partindo. (Eli Halfoun)

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